Calvos vivem com medo

Calvos | Martinho Filhinho baixa a camisola para mostrar uma cicatriz encorpada sobre o ombro, a poucos centímetros do pescoço.

Foi feita com uma catana, pela calada da noite, por desconhecidos que lhe entraram em casa enquanto dormia.

“Vinham cortar a minha cabeça porque tenho careca”.

Aos 58 anos, Martinho ainda tem cabelo, mas já não chega para disfarçar a calvície.

Esta foi a vítima mais recente de uma série de ataques a carecas e profanação de campas relatados pela população e autoridades, desde o final de 2016, na Zambézia, província do centro de Moçambique.

Cinco casos resultaram em homicídio.

Duas das mortes aconteceram em povoações do distrito de Milange, onde vive Martinho, que escapou – mas noutros dois casos ficaram os corpos decapitados e as cabeças desapareceram.

Os carecas vivos têm receio e nem os mortos escapam.

Desde o início do ano, segundo o levantamento das autoridades locais, já foram violadas 15 campas nos cemitérios do distrito e roubados os crânios.

Um deles está enrolado em panos no posto de polícia de Milange, identificado como prova no caso contra um homem de 31 anos.

Calvos vivem com medo em Moçambique
Calvos vivem com medo em Moçambique

Uma fonte da corporação refere que, de acordo com os indícios e depoimentos, a “perseguição aos carecas” é motivada por crenças praticadas com ossadas ou outras partes do corpo, usadas em rituais, porque supostamente atraem riqueza.

A mesma explicação é dada pelo porta-voz provincial da polícia na Zambézia, Miguel Caetano, que classifica a situação como “um novo fenómeno”.

Tudo indica que sejam casos ligados a “superstições”, à semelhança dos actos de violência praticados contra “pessoas albinas” – cujos órgãos se usam como amuleto de boa sorte.

O suspeito detido em Milange diz que trabalhava na agricultura, que era esse o seu “serviço” até um amigo o ter aliciado a exumar ossadas de carecas.

Era suposto receber o equivalente a 80 mil meticais em kwachas, moeda do Maláui, só que o crânio que desenterrou não agradou ao comprador, que o rejeitou.

Como chegou à ossada, quem era o comprador e qual a finalidade, diz não saber explicar.

São pormenores reservados para o amigo, que se encontra a monte.

Amado Selemane, 52 anos, cobre a careca debaixo de uma boina de autoridade, parte da farda de régulo (líder comunitário) de Tambone, aldeia da Zambézia a meio caminho entre Milange e Mocuba, mas nem por isso vive mais descansado.

Amado é sobrinho de Martinho Filhinho e a experiência do tio mostra-lhe que não vale a pena esconder a calvície.

“As pessoas conhecem-me, sabem que sou careca”, conta o tio, tal como Amado e outro membro da família: “somos três carecas”.

A calvície não se pega, mas o medo é contagioso, mesmo junto de quem tem cabelo.

“Este cenário assusta todas as pessoas”, sobretudo depois do que se passou em Tacata, em Maio, conta Pedro Varela, 49 anos, primeiro secretário do círculo de Tambone.

“Uma mulher acordou e descobriu o corpo do marido sem cabeça”.

Houve uma gritaria imensa, a população mobilizou-se e ainda amarraram uma pessoa – outra fugiu e foi detida mais tarde.

Mas a cabeça com careca “não apareceu”.

Mário Macassa classifica o clima de receio como “um outro tipo de guerra”, comparando-o ao medo vivido pela população no passado devido aos confrontos entre as tropas governamentais e o braço armado da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo, principal partido da oposição).

“Soube de carecas que passaram a andar de faca. Outros a acordar durante a noite” nalgumas aldeias, organizando-se, revezando-se para manter vigia até o sol nascer.

Para combater uma suposta superstição, o administrador fez dos curandeiros aliados.

“É uma forma de os autores do crime se sentirem ameaçados” e resultou.

Pelo menos numa ocasião, na localidade de Majaua, “um indivíduo foi pedir um ‘banho’ ao curandeiro”, uma purificação por ter profanado uma campa – e dado o alerta, foi detido.

Sonte Guamila, um dos guardiões de um cemitério nos arredores de Milange, recorda um funeral recente em que se descobriu uma campa aberta.

“Era de uma pessoa que tinha morrido de acidente”, mas que não constava que fosse calva.

“O careca está ao lado” e a campa ficou intacta, ou seja, os assaltantes enganaram-se.

A revolta da população cresceu e a profanação dos cemitérios é condenada de forma unânime.

Hoje, o administrador Mário Macassa acha que a situação é mais tranquila e que já pode haver serenidade.

Ele próprio tem sinais de calvície, mas sem receios e acredita que a resposta conjunta da comunidade está a travar a perseguição aos carecas.

LUSA & Redacção

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