Palestina
Por vezes é necessário recorrer a linguagem de miúdos para explicar as enormes confusões em que os adultos se metem e nunca mais conseguem resolver.
Imagine que você fosse dono de um enorme terreno, bem delimitado, herdado dos seus antepassados. Séculos depois surge-lhe a porta um casal de andrajosos, numa carroça puxada por uma mula magricela de aspecto doentio e um monte de petizes pendurados, que nunca calçou sapatos na vida, mal-cheirosos e ainda mais magros que o estoico animal.
Para a sua surpresa, o patriarca da turba faz-lhe um pedido:
– Senhor, venda-me uma pequena parcela das suas terras, por favor, pois não tenho onde ir. Pago-lhe com o meu trabalho. Vou-lhe limpar e cuidar de todo o seu terreno, quando não estiver cá….
Você venderia? Certamente que o faria. Em nome do Profeta. Por descargo de consciência. Ou por racionalidade económica, no mínimo.
Em pouco tempo, cumprindo com a palavra, os seus novos paupérrimos vizinhos, limpam o terreno e transformam as pequenas parcelas vendidas por si em belos pomares e jardins. Mas há um problema! Mais gente, vinda sabe-se lá de onde, se arregimenta para habitá-las. E o seu vizinho, que nunca se esqueceu da sua própria desgraça, bate-lhe novamente a porta, para lhe pedir outra mini-parcela do seu – ainda – vasto e hereditário património fundiário.
Você hesita. Palavra, puxa palavra… mas a lábia do vizinho e o poder do vil metal, que ele já acumulou, prevalecem. E você, armado em chico-esperto, pensa que conseguiu uma promessa de gratidão eterna e ter dado uma pernada aqueles pacóvios forasteiros. Afinal você também tem família. E aspirações em ser rico. E nada mais fácil do que lucrar sem esforço com o seu pecúlio.
Mas a veia empreendedora faz com que a família alargada da sua vizinhança junte aos pomares e jardins, um condomínio privado, escola, clínica e até um casino. Você cai para o lado quando começa a ver também bólides de alta cilindrada a estacionarem por debaixo das suas barbas. Mal tem tempo para se recompor e já os seus vizinhos batem-lhe novamente a porta com uma proposta irrecusável. Ficar com metade do seu terreno – que nunca foi usado por si – hereditário. Por uma pipa de massa. Afinal, com um casino no quintal, dinheiro é coisa que já não falta na vizinhança. Ai você, pela primeira vez assustado, dá um salto e diz:
– Nem pensar vizinho! Eu também quero construir aqui um condomínio igual ao seu! Com jardim e tudo…
E ele responde calmamente:
– Tudo bem, mas você tem dinheiro para isso? Eu posso emprestar, em nome dos velhos tempos, mas em troca…fico com metade do terreno como garantia, até me reembolsar o dinheiro, com o seu trabalho naturalmente, tal como um dia eu lhe paguei…
Encurralado e indignado, você fecha-se em copas e corta as relações com o vizinho. Mas ele insiste, por telefone. E até por carta. Você ignora-o e faz saber por portas e travessas, que aquela terra é inegociável. Desde o tempo dos seus antepassados. Os primeiros habitantes das redondezas.
Seu vizinho, homem prático e de muitas artes, não faz mais nada. Vai ao Município e apresenta uma denúncia contra si por estar em posse de um imenso terreno. Não fazer nada com ele. Não contribuir para o bem-estar das comunidades. Por ter atitudes feudais com a vizinhança. Enfim, um anacronismo rendeiro em plena era da globalização. E junta à reclamação, o parecer de um conhecido escritório de advogados com badaladas conexões ambientais. Em pouco tempo, o seu terreno passou a ser reserva do Estado. Do Estado! Pois já nem o Município tem a estaleca para perceber a importância e a dimensão daquele assunto. E vai disto, em extraordinária sessão parlamentar, o Estado expropria-lhe a metade do terreno já requerida pelo belicoso vizinho, cuja família não pára de engrossar o efectivo em progressão geométrica. E é então que chega o momento fatal.
O seu vizinho decide que tem de ficar com o terreno todo. Mas desta feita, não lhe pede licença. Invade-o simplesmente com recurso a buldózeres e cachicos armados até aos dentes e mandado judicial. Dá-lhe 24 horas para se pôr a mexer dali. Enraivecido, você grita. Esbraceja. E apedreja os cachicos. Mas apanha com uma valente castanhada dos fiéis plutocratas da vizinhança:
– Ai. Ai. Que já morri! Maldita hora em que aceitei acolher este ingrato como vizinho. Vejam a minha desgraça agora. Debaixo da ponte. Pobre. E mal tendo o que comer…
Enquanto isso, o seu vizinho é agora o seu dono. Você vota quando ele quiser. Você trabalha quando ele quiser. Você dança quando ele quiser. Você até f… quando ele quiser com a mais belas strippers do casino, quando elas despegam pela alta madrugada. Na desgraça colectiva que vos une todos e faz a opulência crescente do todo poderoso vizinho – Sr. Israel! – Os servos do sistema são como gatos pardos. A noite todos se reconhecem como iguais, quando o assunto é não ser um Estado soberano e independente. O resto é conversa para encher chouriços kosher em Nova Iorque, Londres ou Bruxelas.
Disse.
RICARDO SANTOS *
* Especialista em Segurança da Informação (Maputo – Moçambique)
Este artigo foi publicado em primeira-mão na versão PDF do jornal REDACTOR, na sua edição de 19 de Outubro de 2023, na rubrica de opinião.
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