Quero ser marhandza

Quero ser marhandza – Uma senhora, funcionária do Estado, ficou envergonha quando sua filha menor disse, na maior das inocências, respondendo a uma pergunta de uma sua colega, que quando crescida quer ser marhandza como sua tia.

Entenda-se marhandza como uma mulher interesseira.

A resposta foi motivo de riso às gargalhadas para o embaraço da mãe que esperava por algo melhor que lhe deixasse orgulhosa, a sair da boca da menina. Que tivesse dito, por exemplo, que quer ser médica, engenheira, bióloga ou outra profissão, menos essa de marhandza.

As senhoras riram-se porque não entenderam o que está por detrás da resposta. Ridicularizaram a criança e, por tabela, os seus pais, porque não compreenderam a gravidade do assunto.

Consideraram-na perdida em termos de futuro que se pode esperar dela porque não tinham a ideia do que o sonho da criança significa para elas mesmas, como mães, para os pais da menina e para a sociedade em geral.

Mas, afinal, o que há de mal na escolha do que a menor quer ser quando atingir a idade de adulta? Onde está a graça no que a criança disse?

O ponto é que por detrás daquilo que a menor disse está uma forte e crua mensagem. A questão da transmissão de valores geracionais.

Para a criança, a tia é uma referência, o seu ídolo, impressionada com boa vida que ela leva. A possibilidade de poder ter o que quer facilmente, nomeadamente dinheiro, telefone caro, cabelos postiços, roupas e outras coisas.

Acha que para atingir aquele nível de satisfação não é preciso fazer nenhum esforço. Basta ser marhandza, tudo fica resolvido. O resto cai que nem uma fruta madura e pronta para consumir. Que não é preciso ir à escola para sonhar com uma boa qualidade de vida no futuro.

É assim como as coisas acontecem na sociedade. As crianças buscam referências dos mais velhos. De pessoas mais próximas que tanto podem ser primos, tios, avôs e pais, como amigos de família.

Vezes sem conta, como é o caso vertente, os petizes caem na tentação de constituir ídolo uma pessoa que não tem uma conduta exemplar na sociedade, impressionados com algumas fantasias ou vida fácil que ostentam.

Por isso, no lugar de rirmo-nos da criança que escolheu ser marhandza quando adulta, devíamos ficar muito preocupados porque se há um culpado nisto, não é a criança, mas, isso sim, o núcleo familiar onde ela está inserida.

As pessoas que estão à sua volta e que, ao longo da vida, se transformam em ídolos, cujos actos são vistos como exemplo a seguir, neste caso concreto a tia da menina.

Devia ser motivo de muita preocupação para todos nós porque a sua escolha não reflecte propriamente o seu verdadeiro sonho, o sonho da infância que qualquer criança tem. Representa o que é a sociedade de hoje. O rosto de uma sociedade que perdeu por completo os seus valores.

Uma sociedade que antes era educadora, mas que hoje precisa de ser educada para educar melhor os seus constituintes. Para reassumir as suas responsabilidades nesse campo perante os mais novos.

A sociedade em que vivemos já foi melhor. As crianças eram educadas quer em casa, quer na comunidade. Um pai era sempre pai no seu lar e na comunidade. O mesmo em relação a uma mãe. As duas figuras granjeavam muito respeito, simpatia e consideração no seio de todas as crianças.

O seu conselho, a sua chamada de atenção em caso de algum desvio comportamental era de cumprimento rigoroso e sem qualquer tipo de contestação por parte das crianças. Hoje, isso é impossível. Qualquer tentativa de um adulto de corrigir a uma criança por práticas erradas pode resultar em insultos ou humilhação do estilo “quem és tu para me chamares atenção?”.

Naquela altura, não havia espaço para recusar ser educado por um adulto só porque ele não é seu pai ou mãe biológica. Os avôs eram sempre avôs para todos os petizes. Os adultos estavam em sintonia na educação dos mais novos. Cada um deles tinha autoridade perante uma criança, igual à dos seus pais. Podiam, se bem entendessem, castigá-la em caso de mau comportamento.

Nessa altura, a sociedade transmitia outro tipo de valores, nomeadamente o respeito mútuo e pela vida, honestidade, amor ao trabalho e outros. Era uma sociedade que tinha muito para dar em termos da educação. Produzia ídolos diferentes dos que temos hoje. Ídolos que eram um exemplo na comunidade.

Se alguém fizesse a mesma pergunta que foi colocada à futura marhandza a uma criança desse tempo e nessa altura, teria tido uma resposta que orgulharia os seus pais. Que quer ser professor, inspirando-se no seu de lá da aldeia; médico(a) ou enfermeiro(a), à semelhança da titia ou do titio que cuida dele(a) quando doente, no pacato centro de saúde da comunidade; agricultor, espelhando-se no patrão do seu pai, tio, avô, primo ou irmão com grandes machambas de cultivo de milho, mandioca, feijão e outros produtos.

Infelizmente, hoje em dia a sociedade em que vivemos produz alguns ídolos da vergonha. Gente que ostenta riqueza ou bem-estar na sociedade sem um histórico. Gente que ganha dinheiro através de esquemas criminosas, mas infelizmente tido como referência para os mais novos pela qualidade de vida que levam em que não têm falta de nada. Os “ricos” de actualidade que a sociedade se encarrega de os venerar, admirar e, mesmo, aplaudir pela sua rápida ascensão na vida, ao invés de os questionar como era no passado. (Quero ser marhandza)

ALEXANDRE CHIURE

PS:

Porquê “O guerreiro”?

Resolvi escolher o nome “O guerreiro” para a minha rubrica porque me acho como tal. Luto todos os dias para ganhar a vida e contribuir para a melhoria das condições de vida no país.

Mas é, também, uma grande homenagem a todos aqueles que, usando meios rudimentares como a azagaia e flecha, resistiram à penetração colonial portuguesa em Moçambique. Guerreiros comandados por Ngungunhane que faziam as suas operações a partir de Chaimite, em Chibuto, minha terra natal, a terra dos guerreiros.

Este artigo foi publicado intitulado “Quero ser marhandza, quando crescida” foi publicado em primeira-mão na versão PDF do jornal Redactor, na sua edição de 10 de Setembro de 2021, na rubrica O Guerreiro

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