Um Cancro chamado e-Tributação

“A mentira resolve

um momento

mas estraga

uma vida inteira”

(Aristóteles)

Uma vez mais, o Contribuinte cumpriu as suas obrigações fiscais depositando adiantadamente os impostos devidos por cheque visado, aturando longas filas nos balcões da rede bancária nacional, para prevenir multas, juros mora e outras admoestações, a que certamente se sujeitaria, se confiasse na inocente justificação de indisponibilidade crónica dos serviços online do famigerado e-Tributação, um sistema de informação imposto por tecnocratas guiados por Bretton Woods e que detém o estatuto de Vaca Sagrada das Finanças Públicas.

Mas nem sempre foi assim, porque a implementação desta solução personalizada criada pela Oracle Corporation,fora já antecedida por outros sistemas informáticos, numa tentativa de aglutinar todos os impostos do Estado, além de suportar, disponibilizando funcionalidade básicas, a actividade dos diferentes sectores de trabalho com que uma Repartição de Fazenda é normalmente constituída. Nascia assim, por volta de 2002, o sistema NUIT (Cadastro e Enquadramento Fiscal do Contribuinte), seguindo-se o SICR (Cobrança de Impostos) em 2004, para automatização, na medida do possível, do lançamento, liquidação e cobrança dos impostos do Estado.

Somente em 2006, com a criação da Autoridade Tributária de Moçambique, tornou-se óbvia a natureza interina do SICR, o que sugeriu a inevitabilidade da adopção de uma solução tecnológica mais robusta para a cobrança de impostos, o que culminou com procurement do e-Tributação em 2009.

Na génese do e-Tributação, sempre esteve patente o objectivo principal de implementação de acções de modernização dos serviços de administração tributária, para melhorar a cobrança de impostos, reduzir os níveis de evasão fiscal e contribuir para o incremento das receitas do Estado.

E para o concretizar, o Estado moçambicano assumiu como condição sine-qua-non, a facilitação dos processos usados pelos contribuintes para a declaração e pagamento de impostos, sendo nesse sentido, a Internet um instrumento fundamental.

E que também, o e-Tributação teria de ser um sistema de informação de administração tributária integrado com sistemas externos relevantes, conferindo maior transparência e melhor gestão aos processos tributários, diminuindo tanto a evasão fiscal, quanto o desvio de receitas; que no caso específico das receitas próprias, deveria haver a observância do princípio de unidade de tesouraria sem a perda de autonomia dos órgãos e instituições beneficiárias.

Em suma, qualquer que fosse, a implementação informática que resultasse no “sistema e-Tributação”, este jamais poderia ignorar os aludidos aspectos-chave.

Doutro modo, estaríamos sempre a falar de uma solução interina – um SICR melhorado – ou no limite, de um quick-win, como se veio a verificar depois com o e-Declaraçãouma solução tipo self-service, robusta e eficaz, desenvolvida em colaboração com o MozaBanco.

Por conseguinte, esperava-se que da transição do SICR para o “sistema e-Tributação” se produzisse finalmente, uma melhoria substancial na gestão, cobrança, fiscalização, controlo de impostos e o incremento substancial da receita do Estado e a redução dos custos administrativos inerentes. Nada disso aconteceu.

Por isso, causa-me grande perplexidade em saber que, com mais de 40 milhões de USD gastos desde 2009, módulos ainda por desenvolver e sem data prevista de conclusão, o triplamente fracassado e Frankenstein tecnológico, e-Tributação, vai receber mais um cheque em branco, à guisa da grandiloquente agenda de Transformação Digital de Moçambique, muito mais geopolítica, do que propriamente de tecnologias de ponta, diga-se de passagem.

Porque persistir no dogma do e-Tributação, alegando que o Número Único de Identificação Tributária é já o ponto central de todas as informações e processos inerentes à administração tributária, ou a cobrança de receitas se fazer agora em estrita observância ao princípio de unidade de tesouraria, usando-se uma única guia – para a cobrança de todas as receitas, excepto as receitas próprias;  parece muito pouco, para mais de década e meia de tentativa e erro, para que hoje o e-Tributação complique ainda mais, os processos usados pelos contribuintes para a declaração e pagamento de impostos. E também o trabalho quotidiano dos funcionários da Autoridade Tributária de Moçambique.

Na realidade, o e-Tributação tornou-se num cancro que corrói sua missão institucional e que, como todas as estirpes desta enfermidade, não se sabe se propiciada por insuficiência genética visceral, ou simplesmente por maus hábitos doutrinários. 

Senão vejamos, no caso específico das receitas próprias, o princípio da unidade de tesouraria continua a ser deliberadamente contestado, como perda de autonomia, por parte de muitos órgãos e instituições beneficiárias do Estado, que navegam em mares de prosperidade, prestando contas a bel-prazer, e se dando até ao luxo de fazer investimentos empresariais e obras sociais de vulto, quando cronicamente oito em dez funcionários públicos moçambicanos recebem salários em atraso.

Funcionários públicos, que no caso concreto da Autoridade Tributária de Moçambique, ainda são estigmatizados, ao ponto de terem sido pontapeados para um humilhante escalão 11 da Tabela Salarial Única como topo da carreira, enquanto seus pares de algumas instituições públicas de lana caprina, improdutivas por definição, gravitam garbosamente no escalão 20.

Chega-se ao ponto de se publicamente fazer troça, conclamando que os funcionários da Autoridade Tributária de Moçambique por sempre viverem de esquemas, nunca se irão importar com esta despromoção salarial!

Similarmente, dispensando qualquer contraditório, a cobrança de impostos ainda não se faz exclusivamente por rede bancária nacional, usando-se preferencialmente a Internet, rede móvel celular e outros canais de acesso e confirmando que o Contribuinte nunca se tornou, de um modo geral, no enfoque da actuação da Autoridade Tributária de Moçambique, quando finalmente teve de se contentar com o e-Tributação.

Um presente envenenado afinal, este e-Tributação, que nunca induziu a redução de custos administrativos na Autoridade Tributária de Moçambique, inerentes à gestão de receitas fiscais e nem propiciou a disponibilização atempada de informações de gestão, operacionais e estratégicas que as Repartições de Fazenda tanto necessitam, para a contabilização, controlo e agilidade na disponibilização das receitas ao Estado.

Antes pelo contrário, o surgimento do tão idolatrado e-Tributação serviu de bode expiatório para a tutela fomentar abertamente uma política de desinvestimento institucional nas componentes tecnológica e de recursos humanos então existentes e que agora tem como corolário, a indisponibilidade crónica de serviços ao Contribuinte, causada pela pouca robustez e resiliência da sua infra-estrutura tecnológica; o fraco domínio na customização dos processos fiscais e o marasmo do Estado moçambicano quanto a necessidade de materialização efectiva da autonomia administrativa, patrimonial e financeira da Autoridade Tributária de Moçambique, ao abrigo do n°1, alínea c) do art.º 37 do Decreto 9/2010 de 15 de Abril, para assim responder assertivamente a estes desafios.

Num país sério, uma administração tributária ombrearia inquestionavelmente, em relevância e dignidade, com o próprio banco central. Nunca poderia ser tratada como indigente, de mão permanentemente estendida a doadores estrangeiros; à mercê de empresas James Bond; ou à custa de memorandos de entendimento feitos na exacta medida das suas insuficiências.

Quando o Chefe de Estado se referia a Autoridade Tributária de Moçambique como o coração que bombeia o sangue que nutre o Estado moçambicano, certamente não fazia ideia, do quão podre estava o Reino da Dinamarca

Ricardo Santos (Consultor em Segurança de Informação e Cyberlaw)

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