Gatunos de estimação
Na vida, dão-nos pessoas que, às vezes, nos assustam; outras abençoam-nos e algumas dão-nos dores de cabeça. Gatunos não são apenas aqueles que arrombam lojas, ou outros estabelecimentos, incluindo residências. O conceito de gatunos é complexo.
Há, no entanto, gatunos de estimação. Aqui como em qualquer outro lugar do mundo. Esses servem-se das leis para fincarem os seus negócios, as suas vidas, as suas boladas, enfim, são senhores gatunos em casas de luxo e carros de luxo. São gatunos como sal que nunca falta nas casas das pessoas.
Quando têm algum problema, até ligamos para onde foram deportados para nos devolverem. Dissemos: devolvam-nos os nossos gatunos, sentimos falta deles, pois são os únicos que temos. Os gatunos de estimação são únicos que orientam a polícia que batam as pessoas, prendam os inocentes e libertem os culpados.
O povo murmura atrás das cortinas e depois abraça os mesmos gatunos implorando emprego e outras benesses. Este povo merece ter pessoas assim que o maltrata, o abusa, o qualqueriza, o enfia rapé nos olhos e ouvidos. Mas porquê isso? Justamente porque o povo estima os gatunos. Ama-os e os quer de volta como na rubrica do Faro “te quero de volta”.
Onde um animal de estimação é muito prezado, de lá não sai. Até dorme na cama dos criadores, bebe no mesmo copo, tem uma cadeira porta-bebé no carro, tem a sua própria sanita, ou seja, não lhe falta nada e faz tudo o que lhe apetece com a aprovação do dono. Ainda que ele quebre as coisas de casa, o dono prefere não falar, mas apenas comprar ou substituir com outras coisas sob alegação de que o animal está feliz.
Estamos sendo empurrados para endividamentos personalizados. Cada um deve um valor de sete milhões ou mais. Ou seja, vamos morrer pagando algo invisível e sorrindo com quem devíamos chorar. Se isso não nos entristece, então é o Apocalipse no seu apogeu.
Ter um gatuno de estimação é outro nível. Não há outro povo no mundo que tenha essa pretensão a não ser um só, o da pátria amada. Gatunos de estimação não fazem nada, não têm compromisso e ainda mais quem ousar fazer algo visível para humilhar os “queridos” será abatido em nome do amor à pátria. Contrariá-los é uma sentença de morte. Se não há lei que defenda a eutanásia, há uma que defende os gatunos ainda que de forma velada.
Seria este o povo mais calmo do mundo? Talvez seja, mas uma coisa fica patente, é um povo castigado. Todo o povo que o seu sistema de educação é adulterado não tem mais o que fazer se não aceitar tudo. Isso se equipara a uma pessoa com os braços amputados. Como pode lutar? Só assiste e conforma-se com a realidade. Para comer, depende de pessoas de boa vontade e em horários em que elas têm tempo.
Os gatunos de estimação muitas vezes não têm agendas de trabalho. Saem a qualquer horário do dia e vão para onde não sabem o que fazer. Elaboram textos com o intuito de informar aos estimadores com inflação de actividades e festival de mentiras nas suas páginas.
Simulam desculpas, porém, depois dessas desculpas, fazem a mesma coisa. Ou seja, para eles a vergonha e o pudor estão longe e não fazem parte do seu vocabulário. Este é o povo que mais ama os gatunos. De um povo cuja cultura lhe foi estuprada não se pode esperar nada. Um povo cujo silêncio é o estilo de vida não pode almejar esforço algum nele. Pelo contrário, esse povo vive combatendo-se e desonrando-se. Um povo que ama, abraça, estima um gatuno ou gatunos também é gatuno.
É gatuno porque aceita a corrupção, o nepotismo, o amiguismo, etc., etc., corroborando assim com a regressão do país onde vive. Um povo que abraça os gatunos não é vítima, é conivente e responsável por tudo o que acontece nele e fora dele.
Um povo que abraça os gatunos gananciosos é irresponsável e exterminador de esperanças para as gerações vindouras. Um povo que abraça os gatunos é oco e insensível, morno e, ao mesmo tempo, frio, calculista e perigoso. Este povo que temos não passa de comédia. Um dia reclama, outro dia alegra-se com um pedaço de pêra. Um dia lamenta e outro dia alegra-se com a visita de um gatuno ao seu povoado e ainda mais entrega o que não tem.
Portanto, um escravo que não se defende não merece liberdade.
Este artigo foi publicado intitulado “Solidariedade social” foi publicado em primeira-mão na versão PDF do jornal Redactor, na sua edição de 02 de Janeiro de 2024, na rubrica OPINIÃO.
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