O retrato na parede
Nas minhas andanças por Moçambique, fui tomado por uma tristeza inquietante ao observar um padrão que se repete de forma quase litúrgica: a foto do Presidente da República fixada nas paredes de hotéis, igrejas, clínicas, mercados e até bares. O retrato, sempre solene, nos fita de cima, como se a sua presença fosse condição de legitimidade dos espaços. É uma imagem que, em vez de inspirar cidadania, cheira à vigilância simbólica. O que faz o rosto do Presidente da República nestes locais que não pertencem ao Estado?
Estamos diante de um fenômeno que exige reflexão: trata-se de respeito institucional ou resquício de idolatria política? Seria esse gesto banal, à primeira vista, um sintoma de autoritarismo cultural travestido de reverência nacional?
A Constituição moçambicana não exige que estabelecimentos privados ou organizações da sociedade civil ostentem imagens do chefe de Estado. Não há norma legal que imponha tal exposição. O que então legitima essa prática? Medo? Conformismo? Desejo de agradar o poder? Há algo de profundamente simbólico – e preocupante – nesse costume de transformar a figura presidencial em objeto decorativo onipresente.
Quando a imagem de um líder passa a habitar lugares sagrados, comerciais ou privados sem qualquer relação directa com o Estado, estamos diante de uma estetização do poder que remonta aos tempos de culto à personalidade. Recordemo-nos de regimes onde os rostos dos líderes se confundiam com a identidade da pátria — e onde a crítica ao líder era confundida com traição nacional. O retrato na parede, nesse caso, não é apenas um retrato. É um lembrete silencioso de quem manda, mesmo quando não está.
Por isso, lanço aqui um apelo direto aos órgãos judiciais e aos defensores da democracia constitucional: esse tipo de prática precisa ser revisto. O Estado moçambicano é laico, plural e republicano. E num Estado republicano, nenhum cidadão — nem mesmo o Presidente — deve ser elevado ao status de ícone onipresente. A democracia não exige molduras penduradas, mas sim instituições sólidas e cidadãos críticos.
Não é aceitável que instituições religiosas, cujo papel deveria ser o de mediadoras de valores espirituais e éticos, se curvem à política a ponto de naturalizar essa representação. Também não é admissível que clínicas ou hotéis – cujo dever é servir à população – transmitam a ideia de que é necessário prestar culto ao poder para operar em paz.
Aos que dizem que isso é apenas “tradição” ou “costume administrativo”, respondo com a seguinte pergunta: e se amanhã outro governante, menos democrático, exigir que sua foto seja pendurada por obrigação? A parede que hoje abriga um retrato por conveniência, amanhã poderá ser mural da obediência cega.
A democracia se nutre do debate, da divergência e da separação clara entre o público e o privado. Preservar essa linha é impedir que a política se transforme em culto. O presidente deve estar presente na memória dos atos de governo, nas decisões políticas, no respeito às leis – não em molduras que vigiam a sociedade de cima para baixo.
Remover essas fotos não é ato de desrespeito. É ato de liberdade. É reconhecer que num Estado democrático, nenhuma parede deve ser obrigada a carregar o rosto de quem está, por tempo determinado, no exercício de um cargo. Porque, em democracia, o poder não se pendura: se fiscaliza.
JÚNIOR RAFAEL OPUHA KHONLEKELA
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