Dilema

Quando a cabeça não regula, o corpo é que paga! Conheço esta máxima desde miúdo, sempre foi o meu guia moral desde o dia em que a minha mãe me contou um episódio relacionado. Mas hoje aqui estou e pergunto-me o que acontece quando a cabeça regula demais?

São cinco da manhã quando o galo canta. É mais um dia. Levanto a cortina que cobre a janela e sou recebido por uma brisa que denuncia que o Inverno por aqui ainda mora. Uma coisa boa, posso dormir à vontade e não há mosquitos. Viro-me para o lado. A minha esposa, acordada, olha para o tecto pensativa, tão bonita, assim, imóvel. A paixão que senti na primeira vez que vi há 15 anos a filha do Sr. Matavele, não sofreu os abalos temporais, e, desde então, nenhuma outra rapariga comprou a minha atenção, a minha parceira de todas as batalhas, levamos os nossos votos de fidelidade a sério, embora o casamento esteja marcado para daqui a cinco anos, somos felizes. São maravilhosos os cinco filhos que me deu, não arriscaria por nada perder esta família. Já imagino o que lhe passa pela cabeça. Infelizmente, não lhe desejo o habitual bom-dia, não ouso fazer perguntas e nem comentar, já sei como esta conversa termina.

Levanto-me rapidamente para o banho. Na casa-de-banho, de caniço a mistura com lonas e alguns restos de sacos, construída no fundo do quintal, vou ouvindo algumas partes da conversa de transeuntes na rua de trás adjacente à parede da casa-de-banho, que também serve de vedação, completando o espaço deixado pela espinhosa.

Poxah, isto está difícil!

– Viste o telejornal ontem? Dizem que o combustível vai subir de novo, é a terceira vez este ano!

– Eu não entendo como é que isso acontece com tanto petróleo e gás no nosso país!

– Dizem que é por não termos refinarias.

Ai é?! Então por que não pedem investimento para a construção de refinarias em vez de investimento apenas para extrair?

Perco o resto da conversa à medida que se vão afastando. Mergulho por um instante no meu pensamento, enquanto jogo uma caneca plástica de água gelada na cabeça. – Já não temos carvão! – penso alto enquanto me recordo da conversa com a minha esposa na noite anterior, antes de dormir. Saio da casa-de-banho com a capulana enrolada à cintura. Olho desinteressado para a rua. Vejo alguns alunos a caminho da escola. O que me recorda de que também fui informado que as provas já começaram. É preciso dar aos miúdos mais novos dinheiro para pagar as cópias e aos mais velhos no secundário o dinheiro para as fichas.

Já são cinco e meia quando termino de preparar-me. Pego na mochila e dou sinais de que vou sair.

– Já não temos carvão – diz a minha esposa que até aquele momento mantinha-se imóvel a observar o tecto, num tom monótono. Dou um salto, assustado. Tinha cogitado sair sem dar nas vistas. Tarde demais! Vou ao bolso. De lá tiro tudo o que me resta, cinquenta Meticais, em moedas. Largo-as por cima da cabeceira. Dou dois passos com a intenção de sair do quarto. No mesmo instante, a minha esposa vira-se e pega nas moedas e diz:

– Cinquenta Meticais?! – Num tom mais amargurado do que de espanto.

Ciente do que me espera, respiro fundo, voltando-me devagar e respondo:

– É tudo o que me resta!

– O que eu vou fazer com isto? – pergunta num tom áspero. Os miúdos têm prova hoje, já não temos carvão, precisamos de comprar pão e a Joaquina já não tem dinheiro de “chapa” para ir à escola!

Olha para mim à espera de uma reacção. Na ausência de uma, completa:

Indjê a woni singuita!?[1] – Naquele instante percebo que no fundo nem ela quer mais ter aquela conversa que já virou rotina.

– Salário ainda não saiu – respondo cabisbaixo. Vou enviar dinheiro durante o dia, caso consiga algum. E, sem acrescentar mais nada, saio porta afora. Estou cada vez mais certo de que a única coisa que mantém aquela linda mulher do meu lado é mesmo o amor que temos um pelo outro. A este ritmo nem as crianças seguram o lar.

Incerto de como apanhar o transporte, uma vez que tive de largar as minhas últimas moedas, caminho em direcção à estação de comboio.

Por sorte, alguns colegas meus que geralmente comutam comigo ao trabalho, tinham algum de sobra e pagaram o meu transporte. Já no trabalho, visto o uniforme, recebo as ordens do dia, levo ao ombro a pesada AK47, coloco o chapéu e faço-me à rua. O meu colega insiste em conversar banalidades, apesar da minha cara de poucos amigos:

– Sabes que a greve dos médicos continua?

– Viste o vídeo dos alunos sentados no chão em frente à sede do partido? Ouvi dizer que o professor que filmou foi convocado a uma reunião pelo partido, mas não aceitou se fazer presente. O gajo tem tomates!

Vou acenando com a cabeça enquanto ele fala, sem muito a acrescentar ao seu discurso. Penso no investimento que eu e a minha esposa fizemos no ano passado para que conseguisse este trabalho “seguro, sustentável e com garantia de salários todo o final do mês”, já não dava para continuar a ser vendedor ambulante. Contudo, uma pergunta surge na minha mente:

– E o salário já caiu?

O semblante do meu colega muda. Acena que não. Mas acrescenta que ouviu dizer que alguns já começaram a receber os pagamentos. Depois daquela resposta, tanto eu como o meu colega continuámos a caminhada em silêncio, como se uma pedra de gelo tivesse sido jogada sobre nós.

Amuwive, Amuwive[2]! – ouço gritos não muito distantes. Sem hesitar, desatámos a correr em direcção à proveniência das vozes. Não tarda e conseguimos verificar quem é o “muwive”. O gajo corre habilmente, finta as curvas de um jeito que eu nunca tinha visto, parece o Mbappé com a bola nos pés. Chega a ser poético. Já longe das vozes que gritavam por socorro, a perseguição continua nos becos no bairro Ferroviário. Vou-me raspando nalgumas chapas de zinco que vedam os quintais. Quase perco a fé de que será possível alcançar o nosso campeão. Com tanto talento poderia representar o país nas olimpíadas. Por um golpe de sorte nosso e azar para o nosso perseguido. Este tropeça sobre uma pedra e cai mesmo na nossa frente. Cansados, a respirar fundo, e com o estômago a recordar que ainda não foi abastecido. Recupero o fôlego e tiro da cintura as algemas. Naquele instante, o ladrão tira do bolso 1000 Meticais e diz:

– Vamos conversar, chefes! – Por um motivo que eu não sei qual, aquela frase simplesmente veio à mente: “Quando a cabeça não regula o corpo é que paga”. Naquele momento o ladrão estava prestes a pagar com o corpo. Mas… e nós? Éramos conhecidos como os incorruptíveis, chamavam-nos a dubla dos bonzinhos lá na esquadra. Não conseguia entender o motivo para estar naquele momento a pagar com o corpo que já gritava de fome e a cabeça que andava carregada de pensamentos e um coração cada vez mais amargurado. Sem previsão de salário, 1000 Meticais resolveriam muita coisa para nós. De certo que veria o sorriso da minha esposa, naquele dia.

E agora: qual é o corpo que deve pagar, os nossos ou o do ladrão?

STÉLVIO MARTINS

Este artigo foi intitulado foi publicado em primeira-mão na versão PDF do jornal Redactor, na sua edição de 25 de Agosto de 2023, na rubrica de opinião denominado OPINIÃO.

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Gratos pela preferência

https://rb.gy/3w9z6


[1] Insólito, insulto

[2] Ladrão, ladrão!

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