Utopia

Já está. É só isso. Como assim? Não falta nada mesmo? Já posso ir?

Eram cinco da manhã de um dia muito gelado, quando dolorosamente pulei da cama. Preparado para o pior dia da minha vida. Telemóvel com a bateria cheia, dois powerbanks completamente carregados, um livro na mochila, roupa quente não muito pesada, valores na carteira acima do que realmente necessitava. Escuso-me de dizer que, de facto, estava preparado para enfrentar uma instituição pública e ter um dia do diabo: afinal, eu ia renovar a minha carta de condução!

Eram sete horas da manhã quando cheguei ao Centro de Inspecção de Viaturas no Tchumene. Como previa, ainda estava fechado, era o primeiro na fila. Uff, primeira vitória do dia! Oficialmente, as instituições públicas começam a funcionar às 07h30 min, mas até às 07h50 min nada de abrir. Até aqui nada fora do normal. Funcionários atrasados? Não é notícia. Já eram quase oito horas quando o funcionário chegou e começou o atendimento. Estranhamente, éramos apenas cinco na fila.

– Deve ser da temperatura– pensei. Tiveram preguiça de sair da cama.

Era o primeiro, fui convidado a entrar. Sentei-me. O funcionário pediu-me o atestado médico e perguntou se já tinha a referência para depósito. Não a tinha.

Fui convidado a aguardar do lado de fora enquanto atendia a segunda pessoa da fila que já tinha os documentos requisitados em mão. Pronto! Já começou. Pensei, já entrando no terreno da frustração. Cinco minutos depois, fui convidado a entrar, de novo.

– Dê-me a sua carta – disse o funcionário, num gesto rápido e alguns cliques nas teclas do computador, verificou o estado da minha carta. Deu-me a referência e disse:

– Vá à Matola, faça o exame médico. Do outro lado da estrada está o banco, pode fazer o depósito lá e depois volte para finalizar o processo.

Atrás de mim estava um senhor que se encontrava na mesma situação que a minha. Sem atestado.

– Opah! Esqueci-me do atestado médico. Posso conversar consigo? – perguntou ele, dirigindo-se ao senhor do atendimento. Eu já fazia ideia do que ele iria dizer ao funcionário, mas não fiquei para ouvir o resto da conversa. Já imaginando qual é que seria o desfecho, perguntei-me se não seria mais prático engrenar pela mesma via. Contudo, algo em mim descartou a ideia e entrei no “chapa” rumo à Matola.

Chegado à Matola, achei tudo muito estranho: o Centro de Exames Médicos estava quase que às moscas. Em quinze minutos, o meu assunto estava resolvido. Mas, antes de sair, não deixei de notar a presença de um rosto familiar: o senhor que em Tchumene estava na mesma situação que a minha e que tinha ficado para “conversar” com o funcionário também lá estava. Fiquei convicto de que a estratégia não tinha resultado. O funcionário não tinha sede.

Fiz bem em vir directamente para cá – pensei. Depois de rapidamente ter o meu atestado na mão e de ter pago apenas o que cabia pelo mesmo, dirigi-me ao banco que me tinha sido indicado pelo funcionário do INATRO. Invariavelmente, estava super-cheio. Estava bom demais para ser verdade. Para além de dolorosamente ter de pagar dois mil e quinhentos Meticais para obter a carta, ainda tenho de enfrentar esta fila. Vislumbrava mais de 30 pessoas e ainda eram nove da manhã. Bem, eu estava preparado para tudo, portanto decidi que iria enfrentar a fila. Eis que, para o meu espanto, sou informado que à minha frente só estavam duas pessoas e que aquela fila gigantesca que eu via era para o levantamento de cartões. Mais uma vez escapei. Vinte minutos passaram e eu estava fora do banco e com o depósito feito. Atravessei a rua, e vejam só: na paragem, um chapa quase vazio. Entrei nele e fui descer exactamente em frente ao Centro de Inspecção de Viaturas do Tchumene. Já deviam ser 10 horas e 40 minutos. Entrei. Para o meu espanto, havia apenas uma fila configurada por sete pessoas.

Putz! O sistema deve ter ido abaixo, para estar vazio deste jeito, as pessoas devem ter desistido.

Que nada! Tal como aconteceu mais cedo, as pessoas que precisavam do atestado foram convidadas a ir à Matola tratá-lo e a fila resumia-se em três pessoas: no caso eu e mais dois senhores que não demoraram 10 minutos a ser atendidos.

Chegada a minha vez, não pude deixar de mostrar a minha satisfação à mistura com espanto.

O sorriso era largo, a alegria não cabia em mim. O funcionário teve de pedir para que me arranjasse na cadeira, pois eu regozijava-me e não conseguia manter-me quieto.

– Olha para a câmera – disse o funcionário, e, sem perguntar ou comentar nada sobre as longas tranças que carrego, tirou-me a foto. Logo em seguida, imprimiu a minha carta provisória. Ainda eram onze horas e eu já tinha a carta renovada!

– Já está. É só isso!

Como assim? Não falta nada mesmo, já posso ir? – Ainda pasmado não consegui deixar de perguntar ao funcionário antes de sair, que, em troca, ripostava com um olhar desinteressado a migrar para a impaciência à mistura com um pouco de “este gajo deve estar louco”.

Bem, eu fiz questão de agradecer e elogiá-lo pelo bom trabalho.

Até ao momento em que redigia este texto, com a minha carta provisória ao meu lado, ainda não conseguia acreditar que, de facto, isto tinha acontecido.

Vivi uma utopia em Moçambique!

STÉLVIO MARTINS

Este artigo foi intitulado foi publicado em primeira-mão na versão PDF do jornal Redactor, na sua edição de 04 de Agosto de 2023, na rubrica de opinião denominado OPINIÃO.

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