Inocentes

Isso é racismo! Como assim isso é racismo?

Passava das 20h00 quando saímos do hotel. Destino: a casa de uma jornalista que, mais cedo, nos convidara a um jantar.

Éramos um grupo de cinco. Cinco jornalistas moçambicanos, para ser preciso. Três meninas e dois rapazes. Andávamos tão ocupados com a conferência que não tínhamos tido tempo para sair e conhecer lugares diferentes em São Paulo. Até ali, a rotina tinha sido mesmo aquela, conferência/hotel, e vice-versa. Escuso-me de dizer que estávamos mesmo excitados pelo jantar.

Embora fosse Inverno, aquela noite, em particular, não era das mais frias. O Inverno de São Paulo já nos tinha mostrado em ocasiões anteriores que poderia ser rigoroso, mas, naquela noite, se calhar por entre aqueles milhares de prédios imponentes, paredes pintadas, ruas sem lixo e ar doce que adentrava a cavidade torácica, houve um acordo entre eles: “vamos bloquear os ventos frios e deixá-los conhecer a cidade”. E todos acenaram que sim. Pois, estava uma noite mesmo boa. Diferente do que se pode pensar, apesar dos milhares de carros e helicópteros que circulam pela cidade, o ar de São Paulo é agradável, o vento faz carícia à pele; é um beijo da Frozen.

Não nos encontrávamos com aromas que nos obrigam a exercer a grande defesa de levar o polegar e o indicador ao nariz, tal como invariavelmente tem acontecido num determinado lugar. Para além dos jardins espalhados no meio da cidade, também havia grafites nos murais, prédios, pontes, enfim em qualquer lugar em que a imaginação do artista e a tinta ousassem descansar para serem apreciados. Coisas para excitar a vista era o que não faltava naquele lugar. 

Íamos caminhando pela Rua Vergueiro, éramos guiados pelo Domingos, afinal fora ele quem recebera o convite em nosso nome, nada mais justo que se tivesse ocupado a procurar o endereço. Sem internet fora do hotel, seguíamos o mapa off-line que ele tinha gravado. Contudo, os mapas consultados antes da saída do hotel davam todos para o lado contrário e davam menos tempo de caminhada que o que já tínhamos caminhado.

Começávamos a ter dúvidas se realmente íamos pelo caminho certo. Eu e a Anifa entrámos numa loja, com o intuito de comprar algumas coisas para levar ao jantar e também provar um pouco das iguarias locais. Na loja, consultámos a atendente que foi muito simpática em abrir o mapa para nos mostrar que realmente íamos na direcção errada.

– Não, moço, a Vila Mariana é para o outro lado! Cês desce por essa rua aqui óh – dizia a moça num tom cheio de vontade de ajudar.

Voltámos à rua, comunicámos ao grupo.

– Não pah! Eu estou a dizer que é aqui perto. Eu vi no mapa, é ali ao virar da esquina – dizia o Domingos, num tom de quem realmente tinha certeza do que dizia.

E lá íamos nós caminhando, ignorando a moça e seguindo o nosso guia original. Descíamos a D. Rosa, passámos o Mcdonalds, íamos passando o metrô Ana Rosa, quando decidimos que estava na altura de pedir instruções novas.

Fomo-nos aproximando de um senhor que estava parado na esquina entre o largo Dona Ana Rosa e a Av. Conselheiro Rodrigues Alves. De imediato, escondeu o celular que trazia na mão e pôs-se atento. Já tinham nos avisado que não se andava com o celular na mão naquela cidade, portanto fomos unânimes em assumir que o gesto tinha sido mesmo para proteger o seu bem. O senhor foi simpático em mostrar-nos o caminho e até tirou o celular do bolso para mostrar-nos no mapa que, de facto, íamos na direcção contrária.

Graças ao senhor, chegámos finalmente ao local do jantar, que afinal ficava do outro lado e a menos de 800 metros do nosso hotel. Bom, pelo menos já tínhamos uma história para contar. Contudo, a reacção quando chegámos à parte do senhor do celular foi de tristeza, revolta e espanto. Enfim, era muita gente com muitas expressões diferentes, alguns até tinham a cara de quem sentia nojo.

– Quando é que isso vai parar? – indagou uma jornalista indignada.

– Sempre a mesma coisa – disse outro, completando.

A esta altura entreolhávamo-nos sem saber exactamente do que se tratava.

– Isso é racismo! – desabafou a primeira jornalista.

– Como assim? – indaguei inocentemente.

– Você acha que se fosse um grupo de brancos ele tinha escondido o celular? Ele vê um grupo de pretos e sente-se ameaçado. Foi por isso que ele escondeu o celular.

– É sempre a mesma coisa, eles vêem um preto e pensam logo que é ladrão – acrescentou outro jornalista

– Ele só ajudou vocês porque percebeu pelo sotaque que vocês não são daqui.

– Vocês foram vítimas de racismo! – deu a machadada final a primeira jornalista.

 Bem, tranquei-me no meu pensamento, percebi naquele instante que eu não sabia o que era racismo. Senti-me inocente! A minha cabeça ainda não conseguia eliminar a ideia de que o senhor só estava a ser cuidadoso, afinal éramos um grupo de cinco.

STÉLVIO MARTINS

Este artigo foi intitulado foi publicado em primeira-mão na versão PDF do jornal Redactor, na sua edição de 28 de Julho de 2023, na rubrica de opinião denominado OPINIÃO.

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