A “dívida” de Dhlakama

Afonso Dhlakama morreu, já lá vai mês e meio e para trás deixou muita coisa por concluir, incluindo uma “dívida” de escrever as suas memórias, conforme havia prometido numa entrevista à já fechada revista MAIS, concedida ao respectivo director, Joaquim Salvador, publicada em Fevereiro de 2004.

Durante a entrevista em que o fotógrafo de serviço era Albino Mahumana e na qual Salvador era coadjuvado pelo jornalista Jaime Ubisse o finado líder da RENAMO garantia que quando publicar o seu livro de memórias “muitas pessoas vão chorar de emoção” pelo conteúdo da obra.

Eis, a seguir, alguns extractos dessa entrevista cujos objectivos ficaram por cumprir por devido à morte do presidente da RENAMO no passado dia 03 de Maio de 2018:

Como chegou à liderança da RENAMO?

André Matsangaissa foi o primeiro presidente e dirigiu a RENAMO durante dois anos, de 1977 até à sua morte, no dia 17 de Outubro de 1979, na vila da Gorongosa, Sofala, durante um ataque protagonizado pela Frelimo com a ajuda de militares cubanos. Na altura eu era vice-presidente e adjunto de comandante-em-chefe. Só passei à presidência do movimento em Outubro de 1979, tinha apenas 24 anos. Como pode imaginar, foi uma grande responsabilidade devido à idade: ter que liderar mais de 25 mil guerrilheiros espalhados por todo o país, lutando contra o exército da Frelimo, apoiado por países como a União Soviética, Cuba e Tanzânia, entre outros. Na história africana, os líderes começam a destacar-se aos trinta e poucos anos de idade. Portanto, tive que parar com todas as brincadeiras que faziam parte da própria idade para poder dirigir com êxito o movimento.

Dhlakama (ao centro) sendo entrevistado por Jaime Ubisse (è esquerda) e Joaquim Salvador
Dhlakama (ao centro) sendo entrevistado por Jaime Ubisse (è esquerda) e Joaquim Salvador

Vai escrever as suas memórias?

Com certeza que vou escrever um livro de memórias. Até porque passei por momentos complicados que gostaria de partilhar com todos. Por exemplo, depois da morte do André, em 1979, houve quatro tentativas sérias e de grande envergadura para me assassinarem ou apanharem vivo. A primeira, em 1980, com recurso a sofisticado material bélico, como tanques, blindados e [aviões caça bombardeiros] MIG, entre outro equipamento. A Frelimo cercou, de Janeiro a Abril, a Serra da Gorongosa, onde estiveram quatro meses a bombardear, tentando sem sucesso apanhar-me à mão. Porém, o nosso exército conseguiu fazer-lhes frente ao ponto de conseguir capturar grande parte do seu arsenal. Mas por uma questão de precaução, transferimos o nosso quartel-general para a Serra de Sitatonga 2, na província de Manica.

Em Junho seguinte, mais uma vez, eles cercaram durante trinta dias a nossa base, onde acabaram sendo também corridos. Depois mudamo-nos para uma zona chamada Garágua, perto de Espungabera, e mais tarde para Casa Banana. Aqui, com a ajuda de para-quedistas zimbabweanos, as forças governamentais bombardearam o local, mas sem sucesso. Uma vez mais estávamos informados da operação, tendo por isso transferido com antecedência grande parte do nosso material. Foi então que começaram com a história de que apanharam os meus óculos e que eu tinha fugido de motorizada. Não passou de uma desculpa para justificar o fracasso da operação.

A última tentativa para me liquidar foi em 1989 quando, com o auxílio dos bispos, já estávamos a tratar de negociar a paz. Com recurso à força aérea, o exército governamental levou a cabo uma grande ofensiva contra Marínguè, onde se encontrava a nossa base. O ataque começou num momento em que eu estava para levantar voo numa avioneta que me levaria a Nairobi, Quénia. Mas porque o piloto da nossa avioneta era experiente, foi a tempo de a poder esconder no meio das matas, mesmo sob forte bombardeamento. O curioso é que o Presidente [Joaquim] Chissano e outros membros da Frelimo estavam a par da minha saída naquele momento para a capital queniana onde iriamos ter contactos com vista às negociações. Isto foi uma revelação de que o Presidente Chissano e a Frelimo não queriam realmente negociar a paz.

Houve alguma tentativa de enviar agentes duplos para o capturar?

Com certeza, e nós apanhamos muitos deles. Até porque estávamos informados das suas movimentações dado que tínhamos muitos agentes infiltrados na Frelimo. Muitos desses elementos eram da Frelimo, pessoas descontentes e desmoralizados devido às sucessivas derrotas que sofriam no campo de batalha. Se não fossem os zimbabweanos e os tanzanianos, garanto que a Frelimo teria desaparecido. Tenho a certeza de que o próprio General Alberto Chipande, Hama Thai ou Domingos Fondo podem confirmar isto.

E que outros episódios vai contar no seu livro de memórias?

Dhlakama em Marínguè junto de quadros superiores da RENAMO, tendo à esquerda o general Hermínio Morais
Dhlakama em Marínguè junto de quadros superiores da RENAMO, tendo à esquerda o general Hermínio Morais

No dia em que puser isto em livro acredito que muitas pessoas vão chorar de emoção. Recordo-me ainda que, naquela fase do início das negociações de paz aconteceu outro episódio. Eu e a minha esposa apanhamos um voo a partir do Malawi com destino a Nairobi. A certa altura a hospedeira avisou os passageiros que o avião ia fazer escala na capital zimbabweana, Harare. Logo naquele país que tudo fazia para me capturar! Fiquei nervoso e atrapalhado. Fui ter com a minha esposa que se encontrava no banco da frente e perguntei-lhe se ela também tinha ouvido o que a hospedeira acabava de anunciar em inglês e em shona. Ela respondeu-me que havia percebido e depois aconselhou-me “calma. Deus é grande e vai ajudar-nos”. Eu defendia que não podíamos sair, pois o aeroporto estava repleto de soldados que não hesitariam em nos capturar. Mas ela achava que se os restantes passageiros abandonassem o aparelho e nós não o fizéssemos, levantaríamos suspeitas e alertaríamos a própria segurança do aeroporto. Entretanto, para meu alívio, ouvi a hospedeira informar os passageiros que a escala em Harare seria muito curta e ninguém tinha de sair do avião. Diga-me lá então se, de facto, as mulheres não são as nossas guardiãs?

A Dona Rosália é um suporte, uma reserva de força para si?

Dona Rosália, no velório do falecido marido
Dona Rosália, no velório do falecido marido

Sem dúvida. Por exemplo, quando detectámos a fraude nas primeiras eleições, em 1994, eu enervei-me e quase que perdia o controlo. Mesmo assim, ela dizia para me tranquilizar: “mesmo que não vás ao palácio ganhaste a paz e a simpatia do povo. A Frelimo nunca mais te chamará de bandido armado, porque agora o povo está do teu lado”. O mesmo estado de nervosismo se apoderou de mim com a fraude perpetrada pela Frelimo em 1999, tendo vários dos meus generais sugerido que devíamos voltar à guerra porque o comportamento daquele partido já era demais. A Rosália apelou ao bom senso, recomendou-me que eu fosse acalmar os nossos homens que já estavam prontos para voltar às matas e recomeçar a guerra. E mesmo agora, mais recentemente, com as autárquicas, em que a Frelimo mais uma vez desviou votos, ela voltou a apelar à calma e ao bom senso, porque, segundo diz, o povo gosta de mim.

REFINALDO CHILENGUE

Compartilhe o conhecimento
  •  
  •  
  •  
  •  
  •  
  •  
  •  
  •  

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *