Não é sobre religião nem crença, é sobre ciência

Não é sobre religião nem crença, é sobre ciência – Foi uma das intervenções mais contundentes do 2º Intercâmbio sobre redução de danos associados ao consumo de tabaco, que teve lugar a 1 de Dezembro corrente, na capital queniana, Nairobi. Num painel sobre como a ciência impacta o desenvolvimento de políticas e regulação para a redução de danos associados ao consumo do tabaco, Kgosi Letlape, um renomado oftalmologista sul-africano e um dos activistas mais vibrantes na matéria, fez duras críticas à Organização Mundial da Saúde (OMS) e aos governos africanos, pela tendência de rejeitar os produtos alternativos à fumaça. Letlape, que também é presidente da Associação Médica Africana e da Associação dos Conselhos Médicos de África, vê mesmo colonização, e espera, ansioso, pelo dia em que África jamais esperará para ser dita o que fazer.

Para o oftalmologista, um dos problemas-chave na luta contra os danos de tabaco, particularmente em África, é a mensagem que vem da OMS que, alegadamente, encoraja as pessoas dos países pobres e/ou em vias de desenvolvimento a rejeitarem e banirem os produtos de risco reduzido. Para Kgosi Letlape, tal é incompreensível, e lamenta que haja governos africanos a seguirem a cartilha da OMS, implementando medidas que incluem o banimento dos produtos de risco reduzido.

Cáustico, Letlape disse ser inaceitável esperar pelo que chamou de “colonizador” para dizer, aos países africanos, o que devem ou não fazer. “Isso não pode ser permitido”, sublinhou, enfatizando que, do seu lado, lutará pela liberdade de escolha dos africanos.

“As pessoas devem ter a informação correcta. Não podemos banir os produtos”, acrescentou Letlape, para quem “infelizmente, encontramos oposição contra inovação”. Para ele, um outro problema associado é que os serviços de saúde estão a lutar contra a indústria tabaqueira, esquecendo-se de que o que importa são as pessoas, e que 8 milhões de mortes podem ser reduzidas, tal como evidenciado na Suíça, com o uso do Snus, tal como o cigarro electrónico, que disse haver várias evidências de que substitui a fumaça. Lembrou que a OMS também havia recomendado o banimento do Snus na Suíça, o que foi rejeitado, sendo que hoje os resultados são visíveis.

Como se não bastasse, a proibição destes produtos acaba estimulando um mercado negro que os governos não conseguem controlar. Mais do que não serem banidos, Letlape entende que os produtos de risco reduzido deviam estar acessíveis porque os fumantes são, na sua maioria, pobres. O especialista espera pelo dia em que África irá despertar e rejeitar a colonização.

“Espero que África irá acordar e não esperar ser dita o que fazer”, disse, acrescentando que “a auto-colonização é pior que outra”.

“Não é sobre crenças”

Mas foi na sessão de perguntas e repostas que Letlape partiu para a analogia, afirmando que a redução de danos associados ao consumo do tabaco não é uma questão de religião, mas de ciência. “Isto não é sobre religião, não é sobre acreditar, não é sobre crenças. É sobre olhar para a ciência”, disse, condenando os que, nas suas palavras, “escolhem permanecer na escuridão”.

“Temos de parar de esperar por milagres ou algo que alguém nos possa dizer”, disse. Acrescentou que os instrumentos que a OMS está a usar para lidar com o assunto, nomeadamente a Convenção-quadro para o Controlo da epidemia do Tabaco (FCTC, na sigla em inglês) foram desenhados nos tempos do tabaco de combustão, e não dos produtos de risco reduzido. Defende, por isso, que o que a OMS deve fazer é introduzir novos instrumentos, ajustados à era dos produtos alternativos.

“Não podem fazer ‘de doenças evitáveis or isso def´+’±!#$copy & paste’ do mesmo instrumento desenhado para produtos de combustão e aplicá-lo agora para produtos alternativos”, disse. A redução de danos do tabaco foi introduzida para mitigar os danos causados ​​pelo tabagismo, que está entre as principais causas de doenças evitáveis, incluindo doenças cardiovasculares, cancro de pulmão e doença pulmonar obstrutiva crónica.

 “Em todo o mundo, há um interesse crescente entre os especialistas em novas abordagens para o controlo do tabagismo, e há uma abordagem que defende a ideia de que reduzir os efeitos negativos do tabagismo também pode ser alcançado pela redução dos danos causados ​​pelo tabaco”, disse o especialista.

“Precisamos de pesquisas africanas”

Por sua vez, o activista em redução de danos, Chimwemwe Ngoma, do Malawi, fez uma analogia sobre a redução de danos em outras áreas, não no tabaco. Disse que o uso do cinto de segurança (para evitar danos graves em acidentes viação), o uso de preservativo (para evitar contaminação pelo HIV nas relações sexuais), o uso de máscaras de protecção facial (para prevenção contra a Covid-19) são medidas que estão a funcionar em África. Foi depois desta analogia que Chimwemwe Ngoma disse que, em relação ao tabaco, há obstáculos, e apontou a desinformação como um dos principais.

Para Ngoma, a desinformação projectada por especialistas de saúde e até autoridades públicas é muito mais perigosa. “É uma grande ameaça”, sublinhou. Na sua intervenção, o activista lamentou, de forma vigorosa, a falta de pesquisas sobre redução de danos de tabaco, feitas em contextos africanos. Embora reconhecendo que África está inserida numa aldeia global, em resultado do inevitável processo de globalização, destacou a importância de pesquisas feitas no continente para informar as políticas públicas do sector.

“Precisamos de pesquisas africanas quando estamos a fazer regulação e políticas africanas”, disse, acrescentando que não basta importar pesquisas feitas em outros contextos, que nem sempre respondem às especificidades e contextos africanos. “Precisamos de fazer pesquisa, não apenas importar pesquisa e políticas, mas precisamos de fazê-las a partir do nosso próprio contexto”, enfatizou.

Para Ngoma, quando se olha para os sistemas de saúde, no continente, constata-se que não estão desenvolvidos porque muitos governos africanos debatem-se com limitações orçamentais. Por isso, prosseguiu, os novos produtos de risco reduzido não estão disponíveis em muitos dos países africanos porque os governos não podem suportar os custos inerentes.

Por sua vez, Clive Bates enfatizou que o grande problema com que as sociedades se confrontam é a fumaça. Na sua intervenção, recorreu aos dados da OMS para referir que, mesmo com as diferenças entre os países africanos, no geral, o continente apresenta algumas das taxas mais baixas de prevalência da fumaça.

Contudo, alertou Bates, uma vez que o crescimento populacional está alto, em África, a prevalência do consumo do tabaco também poderá crescer substancialmente. Bates também entende que a OMS e outros actores reguladores usam o seu peso institucional ao invés da ciência, o que leva ao que o especialista designou de “resultados terríveis”.

Ficou assente, no intercâmbio de Nairobi, que a cessação do tabagismo é um factor-chave na prevenção de doenças cardiovasculares e cancro, e que é imperativo o desenvolvimento de novas estratégias para reduzir o tabagismo.

PMI

https://bit.ly/3zwuAZU

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